No Feriado de Corpus Christi de 1997 visitaríamos o cenário do poema épico do mineiro Basílio da Gama, O Uraguai: as Missões.
Saímos de carro, Scheila dirigindo, às 6 h da manhã de Porto Alegre, seguindo por Canoas, em direção à BR 285, que nos conduziria à estrada para Santo Ângelo.
Como seguíamos na direção oposta à do nascente, passamos um bom tempo às escuras na estrada, que estava particularmente perigosa em virtude dos inúmeros trechos em obras.
Foi-se-nos revelando a seguir a paisagem serrana: plena de verde, vegetação luxuriante, araucárias e pinheiros natalinos, perpassado vez por outra por uma névoa.
Cruzamos várias pontes sobre rios, arroios e brejos.
Chegando ao trevo de Carazinho, tomamos a direção de Santo Ângelo, na qual, contudo, não entraríamos, para podermos visitar, fazendo menos idas e vindas, todas as ruínas que nos interessavam.
A paisagem serrana vinha, gradualmente, sendo substituída pelo pampa: imensas planícies descampadas, vegetação rasteira, com pequenos bosques aqui e ali, que evocavam a epopéia de quantos, índios e brancos, lutaram por sobreviver naquelas terras.
A cruz missioneira, de três braços, postava-se à entrada de cada cidade que constituíra, antes, uma redução.
Decidimos pernoitar no único hotel de São Miguel das Missões, já que nos haviam cantado em prosa e verso o famoso espetáculo de som e luz que se realizaria à noite.
Chegamos a São Miguel, cujo cenário, não sei por qual motivo, me pareceu familiar.
Um dado que me deixou bastante entristecido foram as crianças com traços guaranis pedindo esmola nas ruínas da missão.
Após almoçarmos no restaurante que fica ali perto, Scheila deu-lhes alguma comida.
Ao adentrarmos as ruínas, dirigimo-nos ao museu, onde se viam algumas das peças elaboradas pelos guaranis, tanto sob o ponto de vista utilitário, como pias, por exemplo, quanto sob o ponto de vista místico, como era o caso das figuras de santos e de anjos com traços guaraníticos e cabelos louros.
Tal como nas construções incaicas e em Tiahuanacu, as pedras das construções missioneiras unidas sem argamassa.
A admiração que Saint-Hilaire demonstrou sobre o verdadeiro milagre operado pelos piedosos padres sobre aqueles brutos selvagens não passa de manifestação de puro preconceito de colonizador, que não deixa de guardar uma certa relação com o sentimento experimentado por Cortez em face das edificações dos bárbaros astecas.
Hemetério José Velloso da Silveira, adversário dos que viram nas Missões uma forma de explorar a força de trabalho dos guaranis, tinha, a respeito do engenho destes, o mesmo conceito que o Governador Gomes Freire: incapazes de raciocinar, devido a apoucada inteligência, poderiam, quando muito, ser bem adestrados, como animais de circo.
Aliás, ser apresentado como atração circense foi o destino dos charruas, índios do Uruguai dizimados em 1850, inimigos dos espanhóis e dos jesuítas, e que ajudaram as forças do Tratado de Madrid a vencerem as dificuldades do terreno durante as Guerras Guaraníticas.
Na simpática capital do país vizinho – onde adquiri uma tradução em espanhol do diário de viagens do Coronel Fawcett -, cuja população indígena foi totalmente destruída e, em sua população global, somente 3% apresentavam ascendência dos autóctones, foi erigido um monumento aos charruas.
A Colônia do Sacramento, cidade portuguesa construída nos inícios do ciclo do ouro no Brasil (1680), por onde se iniciou o estabelecimento do homem branco no território que, à época em que estas linhas eram escritas, pertencia ao Uruguai, fôra, por ocasião do Tratado de Madrid, em cuja redação teve papel preponderante o brasileiro Alexandre de Gusmão – irmão do Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, a quem se atribui a primazia sobre os irmãos Montgolfier na invenção do balão –, entregue aos espanhóis em troca do território missioneiro.
Em maio de 1998, visitaríamos aquela pequena cidade no Uruguai onde é destacada a presença lusitana, em que nos chamaram a atenção as telhas moldadas sobre as coxas dos escravos, o grande número de canhões espalhados pelas praças, os azulejos, tudo revelando um forte parentesco com as cidades históricas de Minas Gerais.
Chamou-nos a atenção, também, na Colônia do Sacramento, a boa educação dos motoristas, que paravam sempre à aproximação do pedestre, algo que o Dr. Luiz Vicente de Vargas Pinto atribuía à ausência de indústrias automobilísticas no país, e, por esta mesma razão, à ausência do afã de velocidade que se imprimia na mentalidade da população que vivia à volta de tais indústrias.
Mas, voltemos às Missões riograndenses.
Quando foi feita a restauração primeira na catedral de São Miguel - cujo risco originário data de cerca de 1740, sendo atribuído a Gian Battista Primoli -, utilizou-se tijolo e argamassa, produzindo um resultado estético discutível, destoando do original, embora as intenções de quem o fez sejam merecedoras de todo louvor.
As colunas tinham capitéis que lembravam levemente o estilo coríntio, embora elas mesmas se prendessem mais à simplicidade do estilo dórico.
Chamavam a atenção certos entalhes na pedra e na madeira que lembravam folhas de erva-mate, o que mostrava ser verdadeira a asserção de Menotti del Picchia quanto a ter sido o índio quem conquistou o jesuíta e não o contrário, já que os padres se opunham tenazmente à utilização do chimarrão quando iniciaram a catequese.
Veja-se que o Coronel Fawcett, quando esteve nos domínios do que antes fora o Império Teocrático Jesuíta, observou que, a despeito do aparente zelo dos nativos pela Igreja, conservavam eles suas antigas cerimônias, realizando-as em segredo, já que o emblema formoso do sol para eles mais significava que a hipocrisia dos sacerdotes.
Também chamavam a atenção entalhes e riscos mais recentes, de vândalos que queriam que a posteridade soubesse como se chamavam...
Cumpre lembrar, ainda, que as missões se rebelaram inclusive contra a autoridade da cúpula da Companhia de Jesus, que era pela obediência incondicional à autoridade dos reis dos dois únicos Estados onde não pudera frutificar a Reforma Protestante, algo mui semelhante ao que ocorreu nas Minas Gerais à época da Guerra dos Emboabas, início do século XVIII, como se pode ler nos Estudos sobre o ciclo do ouro, do meu caríssimo Professor e amigo Washington Peluso Albino de Souza.
Não podemos esquecer que a catequese jesuítica surgiu precisamente como uma manifestação da Contra-Reforma, da reação da Igreja ao cisma desencadeado por Lutero na Saxônia e Calvino na Suíça, com muito maior sucesso que as heresias que haviam espocado na Idade Média precisamente por não traduzirem movimentos que pregassem o apeamento dos senhores em prol dos camponeses.
Tinha ela, portanto, um caráter eminentemente conservador, e isto não escapou a Castro Alves.
Não foi sem motivos que déspotas esclarecidos, simpatizantes do pensamento iluminista, como o Marquês de Pombal, combateram o poder dos jesuítas, chegando mesmo à sua expulsão, temendo que viessem, de repente, a submeter o poder temporal ao poder espiritual.
Aliás, Hemetério José Velloso da Silveira, partidário incondicional dos jesuítas, refere que o combate a estes fazia parte do plano do astuto político português para enfraquecer a nobreza e o clero, que se colocavam como verdadeiros obstáculos a que se convertesse no Richelieu ibérico.
Fugindo ao partidarismo que quantos que se debruçaram sobre este capítulo da história americana demonstram, ora enaltecendo a "dedicação dos padres", como Saint-Hilaire e Hemetério Silveira, ora louvando a "ação libertadora promovida pelas tropas luso-espanholas", como Avé Lallemant e Basílio da Gama, passando pela caracterização da República dos Guaranis como a primeira experiência genuinamente comunista, forçoso reconhecer o tirocínio do ministro português, que percebia estar a soberania de seu país em sua colônia do Atlântico com os dias contados.
A Guerra dos Emboabas estalara no ano de 1708, a revolta de Felipe dos Santos contra as Casas de Fundição ocorrera em 1720, Amador Bueno em São Paulo fôra aclamado rei, o descaminho do ouro e pedras preciosas era prática rotineira, os conflitos entre colonos portugueses e missionários jesuítas no Pará pelo concurso do trabalho indígena, prejudicando o abastecimento do porto lisboeta dos produtos conhecidos como drogas do sertão (especiarias e ervas medicinais), o escoamento do ouro das Minas Gerais para a Inglaterra em virtude do Tratado com esta assinado por Portugal em 1703, o progressivo enriquecimento de outros Estados Nacionais que conhecera em virtude do exercício da carreira diplomática, tais os fatos que fundamentavam os seus temores.
Mas, voltemos a São Miguel.
Ali é que o famoso Sepé Tiarayú ou Tiaraju, o guerreiro lunar, santificado pelos missioneiros, um dos heróis do poema que Basílio da Gama paradoxalmente compusera para louvar ao destruidor de São Miguel, o General Gomes Freire de Andrade, liderou a resistência contra as tropas de Portugal e Espanha.
Visitamos também ali, enquanto não caía a noite, a fonte jesuítica, feita das mesmas pedras que serviram para edificar a catedral, com figuras de anjos com traços guaranis.
Fomos assistir ao espetáculo de som e luz.
Demorei um pouco para aprender a lidar com a filmadora no escuro, já que tinha ela dispositivos aptos a permitirem a reprodução mesmo com baixa luminosidade.
Deste modo, alguns fotogramas saíram pura e simplesmente escuros, outros, com uma imagem impressionista, apenas sugerindo a catedral filmada.
A noite estava magnificamente estrelada.
As luzes acendiam em lugares estrategicamente planejados, de tal sorte que parecia ganharem vida a catedral e o bosque situado à sua esquerda.
Diálogos em versos do bosque com a catedral, dos personagens do drama que se desenrolara naquela primeira metade do século XVIII, músicas daquela época, reprodução dos combates, tudo realçando a tragédia que ali ocorrera.
Em que pese a beleza do espetáculo, sob o ponto de vista do texto, talvez melhor se houvesse se tivesse sido escrito em prosa.
Após o apagar das luzes, com a Scheila pela mão, olhei em direção à catedral e imaginei a cena descrita na lenda colhida por Simões Lopes Neto a respeito das mulheres guaranis refugiadas ali dentro com suas crianças, cercadas pelas feras e perseguidas pelas tropas luso-espanholas, criando campo para a ação da Boi-Guaçu.
Dia seguinte, rumamos a São João Batista.
Uma placa indicando o caminho para São João das Missões induziu-nos em erro, já que esta localidade não figurava no mapa Quatro rodas que tínhamos em mãos, assim como São João Batista.
Trilhamos meia hora em uma estrada de terra, cheia de bifurcações, até que um passante nos esclareceu que São João das Missões e São João Batista eram localidades diferentes, com o que preferimos pegar a estrada para Santo Ângelo e, dali, tomar o acesso às ruínas missioneiras.
É de se esclarecer que somente São Miguel tinha acesso pavimentado da BR às ruínas, o mesmo não ocorrendo quanto às demais.
Em São João Batista, ao contrário do que ocorria em São Miguel, a entrada era gratuita.
A conservação do sítio arqueológico, entretanto, deixava mais a desejar, já que as pedras da igreja foram utilizadas como material para a edificação de moradias de habitantes das imediações.
O espaço era retomado pela natureza, as árvores cresciam sobre os restos das edificações que antes ali existiram e que abrigaram a primeira usina de fundição do minério de ferro no Rio Grande do Sul, instalada ali em 1697 por um erudito músico, o Padre Antônio Sepp, que deixou um dos mais importantes testemunhos escritos sobre a vida nas Missões.
O antigo cemitério da missão continuava a ser utilizado pela comunidade do vilarejo que era próximo às ruínas.
Destacava-se nas ruínas um mural representando o Padre Antônio Sepp e os índios pondo a trabalhar a forja.
A cerâmica, ali, era trabalhada de acordo com duas técnicas.
Uma, trazida pelos jesuítas, empregando o torno de oleiro.
A outra, desenvolvida pelos autóctones desde tempos imemoriais, consistente na roletagem, isto é, na confecção de utensílios a partir de um rolo feito com a mão.
O guarda das ruínas de São João referiu, com relação à sua restauração, que se estava fazendo um esforço para se recuperarem as pedras originais, que a cupidez e incúria de antigos administradores permitira fossem dali levadas.
São Lourenço Mártir, no Município de São Lourenço das Missões, mais destruída que São João Batista, outrora tivera uma Catedral famosa por sua opulência, à qual fez referência o viajante Saint-Hilaire que esteve no Rio Grande do Sul entre 1821 e 1822.
Fôra a redução uma das mais prósperas, sendo um importante centro produtor de gado e erva-mate.
Uma vaca pastava onde fôra antes a Catedral, destruída muito menos pelas Guerras Guaraníticas do que pela incúria administrativa e pelos colonos que resolveram utilizar-lhe as pedras para construírem suas moradias - fato denunciado tanto por Robert Avé-Lallemant, que visitou as ruínas em 1850, como pelo viajante pernambucano Hemetério José Velloso da Silveira, que visitou as ruínas em 1855, como também pelo Cônego João Gay, que registrou o prosseguimento da obra de destruição em 1863.
Resolvemos ir a São Nicolau, onde se situava a comunidade dos melhores escultores, segundo os testemunhos da época.
Pegamos a estrada para São Luiz Gonzaga e entramos na cidade em direção a 16 de Novembro, uma pequena cidade agrícola, povoada por colonos alemães.
O caminho mais curto de 16 de novembro para São Nicolau estava interditado, por causa das obras de asfaltamento do Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem do Estado do Rio Grande do Sul, que, ademais, poderia também proceder à pavimentação do caminho para as outras ruínas, já que elas foram tombadas pela UNESCO como patrimônio cultural da humanidade.
As ruínas da Igreja de São Nicolau, construída em 1626, situam-se na Praça Central
Scheila chamou-me a atenção para o fato de que o soalho da igreja não era de chão batido, mas de pedras, cujos restos ainda se viam pelo chão da Praça.
Consegui filmar um joão-de-barro que pulava sobre as pedras do antigo soalho.
Fora da Praça, a entrada para um túnel subterrâneo construído àquela época.
Crianças em uma casa vizinha exercitavam-se no laço, com uma caveira bovina pendurada num cavalete de construção.
No Museu de São Nicolau, filmamos utensílios de metal como maçanetas, fechaduras, pregos fundidos nas Missões.
Terminada esta visita, projetamos uma viagem às missões da Argentina (San Ignacio Mini) e do Paraguai (Trinidad), para completarmos o ciclo.
Após a visita a São Nicolau, passamos por Santo Ângelo, onde conhecemos o Museu Histórico e Regional, onde se vêem tanto peças dos tempos das Missões como reminiscências da Guerra dos Farrapos e da Revolução Federalista.
Não chegamos a ver a Estação Ferroviária, construída em 1918 a partir de um projeto de Luís Carlos Prestes, mas vimos ali um monumento à Coluna Prestes-Miguel Costa - um dos marcos do tenentismo, pois à época não havia ainda Prestes abraçado a doutrina marxista - feito por Oscar Niemeyer.
Decidimos pernoitar em Cruz Alta, a terra natal de Érico Veríssimo, cuja casa fôra adquirida pela municipalidade e tombada sete anos antes da morte do autor da saga dos Terra-Cambará.
À vista dos preços no calçadão dos hotéis, seguimos a orientação de um dos habitantes e paramos na Pensão Serrana: simples, limpa, barata e com água quente e bom refeitório.
No dia seguinte, visita à casa de Érico Veríssimo, onde além dos objetos que lhe pertenceram e das fotos em que o romancista aparecia ao lado de pessoas do mundo político e artístico, chamaram a atenção particularmente os seus desenhos, a sua obra de cartunista.
Dali, seguimos a Santa Maria, cidade universitária, com um trânsito extremamente irracional, que em maio é cenário de um dos mais importantes eventos da música nativista: a Tertúlia.
Por ali é que subiram as tropas encarregadas de fazer cumprir o Tratado de Madrid, numa jornada que, abstração feita do seu desígnio, não deixou de merecer o epíteto de heróica, já que o frio fora responsável pela morte de animais de carga, montarias e soldados.
Quisemos visitar a catedral, construída nos anos 20, com inspiração francamente barroca.
Estava fechada à visitação pública, o que foi uma pena, pois eu queria ver os afrescos de Aldo Locatelli.
De Santa Maria, seguimos em direção à estrada que liga Uruguaiana a Porto Alegre.
Acostumado como estava a fazer o percurso de ônibus à noite, aos tempos em que iniciara minha carreira, era, efetivamente, a primeira vez que eu reparava na beleza do cenário pampeiro que ladeava a BR 290.
Melhor um poeta, Basílio da Gama, para descrever no Canto IV d' O Uraguai tal cenário:
"Assim quem olha do escarpado cume
Não vê mais que o céu, que o mais lhe encobre
A tarda e fria névoa, escura e densa.
Mas quando o Sol de lá do eterno e fixo
Purpúreo encosto de dourado assento,
Coa dourada mão desfaz e corre
O véu cinzento de ondeadas nuvens,
Que alegre cena para os olhos! Podem
Daquela altura, por espaço imenso,
Ver as longas campinas retalhadas
De trêmulos ribeiros, claras fontes
E lagos cristalinos, onde molha
As leves asas o lascivo vento.
Engraçados outeiros, fundos vales
E arvoredos copados e confusos".
Saímos de carro, Scheila dirigindo, às 6 h da manhã de Porto Alegre, seguindo por Canoas, em direção à BR 285, que nos conduziria à estrada para Santo Ângelo.
Como seguíamos na direção oposta à do nascente, passamos um bom tempo às escuras na estrada, que estava particularmente perigosa em virtude dos inúmeros trechos em obras.
Foi-se-nos revelando a seguir a paisagem serrana: plena de verde, vegetação luxuriante, araucárias e pinheiros natalinos, perpassado vez por outra por uma névoa.
Cruzamos várias pontes sobre rios, arroios e brejos.
Chegando ao trevo de Carazinho, tomamos a direção de Santo Ângelo, na qual, contudo, não entraríamos, para podermos visitar, fazendo menos idas e vindas, todas as ruínas que nos interessavam.
A paisagem serrana vinha, gradualmente, sendo substituída pelo pampa: imensas planícies descampadas, vegetação rasteira, com pequenos bosques aqui e ali, que evocavam a epopéia de quantos, índios e brancos, lutaram por sobreviver naquelas terras.
A cruz missioneira, de três braços, postava-se à entrada de cada cidade que constituíra, antes, uma redução.
Decidimos pernoitar no único hotel de São Miguel das Missões, já que nos haviam cantado em prosa e verso o famoso espetáculo de som e luz que se realizaria à noite.
Chegamos a São Miguel, cujo cenário, não sei por qual motivo, me pareceu familiar.
Um dado que me deixou bastante entristecido foram as crianças com traços guaranis pedindo esmola nas ruínas da missão.
Após almoçarmos no restaurante que fica ali perto, Scheila deu-lhes alguma comida.
Ao adentrarmos as ruínas, dirigimo-nos ao museu, onde se viam algumas das peças elaboradas pelos guaranis, tanto sob o ponto de vista utilitário, como pias, por exemplo, quanto sob o ponto de vista místico, como era o caso das figuras de santos e de anjos com traços guaraníticos e cabelos louros.
Tal como nas construções incaicas e em Tiahuanacu, as pedras das construções missioneiras unidas sem argamassa.
A admiração que Saint-Hilaire demonstrou sobre o verdadeiro milagre operado pelos piedosos padres sobre aqueles brutos selvagens não passa de manifestação de puro preconceito de colonizador, que não deixa de guardar uma certa relação com o sentimento experimentado por Cortez em face das edificações dos bárbaros astecas.
Hemetério José Velloso da Silveira, adversário dos que viram nas Missões uma forma de explorar a força de trabalho dos guaranis, tinha, a respeito do engenho destes, o mesmo conceito que o Governador Gomes Freire: incapazes de raciocinar, devido a apoucada inteligência, poderiam, quando muito, ser bem adestrados, como animais de circo.
Aliás, ser apresentado como atração circense foi o destino dos charruas, índios do Uruguai dizimados em 1850, inimigos dos espanhóis e dos jesuítas, e que ajudaram as forças do Tratado de Madrid a vencerem as dificuldades do terreno durante as Guerras Guaraníticas.
Na simpática capital do país vizinho – onde adquiri uma tradução em espanhol do diário de viagens do Coronel Fawcett -, cuja população indígena foi totalmente destruída e, em sua população global, somente 3% apresentavam ascendência dos autóctones, foi erigido um monumento aos charruas.
A Colônia do Sacramento, cidade portuguesa construída nos inícios do ciclo do ouro no Brasil (1680), por onde se iniciou o estabelecimento do homem branco no território que, à época em que estas linhas eram escritas, pertencia ao Uruguai, fôra, por ocasião do Tratado de Madrid, em cuja redação teve papel preponderante o brasileiro Alexandre de Gusmão – irmão do Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, a quem se atribui a primazia sobre os irmãos Montgolfier na invenção do balão –, entregue aos espanhóis em troca do território missioneiro.
Em maio de 1998, visitaríamos aquela pequena cidade no Uruguai onde é destacada a presença lusitana, em que nos chamaram a atenção as telhas moldadas sobre as coxas dos escravos, o grande número de canhões espalhados pelas praças, os azulejos, tudo revelando um forte parentesco com as cidades históricas de Minas Gerais.
Chamou-nos a atenção, também, na Colônia do Sacramento, a boa educação dos motoristas, que paravam sempre à aproximação do pedestre, algo que o Dr. Luiz Vicente de Vargas Pinto atribuía à ausência de indústrias automobilísticas no país, e, por esta mesma razão, à ausência do afã de velocidade que se imprimia na mentalidade da população que vivia à volta de tais indústrias.
Mas, voltemos às Missões riograndenses.
Quando foi feita a restauração primeira na catedral de São Miguel - cujo risco originário data de cerca de 1740, sendo atribuído a Gian Battista Primoli -, utilizou-se tijolo e argamassa, produzindo um resultado estético discutível, destoando do original, embora as intenções de quem o fez sejam merecedoras de todo louvor.
As colunas tinham capitéis que lembravam levemente o estilo coríntio, embora elas mesmas se prendessem mais à simplicidade do estilo dórico.
Chamavam a atenção certos entalhes na pedra e na madeira que lembravam folhas de erva-mate, o que mostrava ser verdadeira a asserção de Menotti del Picchia quanto a ter sido o índio quem conquistou o jesuíta e não o contrário, já que os padres se opunham tenazmente à utilização do chimarrão quando iniciaram a catequese.
Veja-se que o Coronel Fawcett, quando esteve nos domínios do que antes fora o Império Teocrático Jesuíta, observou que, a despeito do aparente zelo dos nativos pela Igreja, conservavam eles suas antigas cerimônias, realizando-as em segredo, já que o emblema formoso do sol para eles mais significava que a hipocrisia dos sacerdotes.
Também chamavam a atenção entalhes e riscos mais recentes, de vândalos que queriam que a posteridade soubesse como se chamavam...
Cumpre lembrar, ainda, que as missões se rebelaram inclusive contra a autoridade da cúpula da Companhia de Jesus, que era pela obediência incondicional à autoridade dos reis dos dois únicos Estados onde não pudera frutificar a Reforma Protestante, algo mui semelhante ao que ocorreu nas Minas Gerais à época da Guerra dos Emboabas, início do século XVIII, como se pode ler nos Estudos sobre o ciclo do ouro, do meu caríssimo Professor e amigo Washington Peluso Albino de Souza.
Não podemos esquecer que a catequese jesuítica surgiu precisamente como uma manifestação da Contra-Reforma, da reação da Igreja ao cisma desencadeado por Lutero na Saxônia e Calvino na Suíça, com muito maior sucesso que as heresias que haviam espocado na Idade Média precisamente por não traduzirem movimentos que pregassem o apeamento dos senhores em prol dos camponeses.
Tinha ela, portanto, um caráter eminentemente conservador, e isto não escapou a Castro Alves.
Não foi sem motivos que déspotas esclarecidos, simpatizantes do pensamento iluminista, como o Marquês de Pombal, combateram o poder dos jesuítas, chegando mesmo à sua expulsão, temendo que viessem, de repente, a submeter o poder temporal ao poder espiritual.
Aliás, Hemetério José Velloso da Silveira, partidário incondicional dos jesuítas, refere que o combate a estes fazia parte do plano do astuto político português para enfraquecer a nobreza e o clero, que se colocavam como verdadeiros obstáculos a que se convertesse no Richelieu ibérico.
Fugindo ao partidarismo que quantos que se debruçaram sobre este capítulo da história americana demonstram, ora enaltecendo a "dedicação dos padres", como Saint-Hilaire e Hemetério Silveira, ora louvando a "ação libertadora promovida pelas tropas luso-espanholas", como Avé Lallemant e Basílio da Gama, passando pela caracterização da República dos Guaranis como a primeira experiência genuinamente comunista, forçoso reconhecer o tirocínio do ministro português, que percebia estar a soberania de seu país em sua colônia do Atlântico com os dias contados.
A Guerra dos Emboabas estalara no ano de 1708, a revolta de Felipe dos Santos contra as Casas de Fundição ocorrera em 1720, Amador Bueno em São Paulo fôra aclamado rei, o descaminho do ouro e pedras preciosas era prática rotineira, os conflitos entre colonos portugueses e missionários jesuítas no Pará pelo concurso do trabalho indígena, prejudicando o abastecimento do porto lisboeta dos produtos conhecidos como drogas do sertão (especiarias e ervas medicinais), o escoamento do ouro das Minas Gerais para a Inglaterra em virtude do Tratado com esta assinado por Portugal em 1703, o progressivo enriquecimento de outros Estados Nacionais que conhecera em virtude do exercício da carreira diplomática, tais os fatos que fundamentavam os seus temores.
Mas, voltemos a São Miguel.
Ali é que o famoso Sepé Tiarayú ou Tiaraju, o guerreiro lunar, santificado pelos missioneiros, um dos heróis do poema que Basílio da Gama paradoxalmente compusera para louvar ao destruidor de São Miguel, o General Gomes Freire de Andrade, liderou a resistência contra as tropas de Portugal e Espanha.
Visitamos também ali, enquanto não caía a noite, a fonte jesuítica, feita das mesmas pedras que serviram para edificar a catedral, com figuras de anjos com traços guaranis.
Fomos assistir ao espetáculo de som e luz.
Demorei um pouco para aprender a lidar com a filmadora no escuro, já que tinha ela dispositivos aptos a permitirem a reprodução mesmo com baixa luminosidade.
Deste modo, alguns fotogramas saíram pura e simplesmente escuros, outros, com uma imagem impressionista, apenas sugerindo a catedral filmada.
A noite estava magnificamente estrelada.
As luzes acendiam em lugares estrategicamente planejados, de tal sorte que parecia ganharem vida a catedral e o bosque situado à sua esquerda.
Diálogos em versos do bosque com a catedral, dos personagens do drama que se desenrolara naquela primeira metade do século XVIII, músicas daquela época, reprodução dos combates, tudo realçando a tragédia que ali ocorrera.
Em que pese a beleza do espetáculo, sob o ponto de vista do texto, talvez melhor se houvesse se tivesse sido escrito em prosa.
Após o apagar das luzes, com a Scheila pela mão, olhei em direção à catedral e imaginei a cena descrita na lenda colhida por Simões Lopes Neto a respeito das mulheres guaranis refugiadas ali dentro com suas crianças, cercadas pelas feras e perseguidas pelas tropas luso-espanholas, criando campo para a ação da Boi-Guaçu.
Dia seguinte, rumamos a São João Batista.
Uma placa indicando o caminho para São João das Missões induziu-nos em erro, já que esta localidade não figurava no mapa Quatro rodas que tínhamos em mãos, assim como São João Batista.
Trilhamos meia hora em uma estrada de terra, cheia de bifurcações, até que um passante nos esclareceu que São João das Missões e São João Batista eram localidades diferentes, com o que preferimos pegar a estrada para Santo Ângelo e, dali, tomar o acesso às ruínas missioneiras.
É de se esclarecer que somente São Miguel tinha acesso pavimentado da BR às ruínas, o mesmo não ocorrendo quanto às demais.
Em São João Batista, ao contrário do que ocorria em São Miguel, a entrada era gratuita.
A conservação do sítio arqueológico, entretanto, deixava mais a desejar, já que as pedras da igreja foram utilizadas como material para a edificação de moradias de habitantes das imediações.
O espaço era retomado pela natureza, as árvores cresciam sobre os restos das edificações que antes ali existiram e que abrigaram a primeira usina de fundição do minério de ferro no Rio Grande do Sul, instalada ali em 1697 por um erudito músico, o Padre Antônio Sepp, que deixou um dos mais importantes testemunhos escritos sobre a vida nas Missões.
O antigo cemitério da missão continuava a ser utilizado pela comunidade do vilarejo que era próximo às ruínas.
Destacava-se nas ruínas um mural representando o Padre Antônio Sepp e os índios pondo a trabalhar a forja.
A cerâmica, ali, era trabalhada de acordo com duas técnicas.
Uma, trazida pelos jesuítas, empregando o torno de oleiro.
A outra, desenvolvida pelos autóctones desde tempos imemoriais, consistente na roletagem, isto é, na confecção de utensílios a partir de um rolo feito com a mão.
O guarda das ruínas de São João referiu, com relação à sua restauração, que se estava fazendo um esforço para se recuperarem as pedras originais, que a cupidez e incúria de antigos administradores permitira fossem dali levadas.
São Lourenço Mártir, no Município de São Lourenço das Missões, mais destruída que São João Batista, outrora tivera uma Catedral famosa por sua opulência, à qual fez referência o viajante Saint-Hilaire que esteve no Rio Grande do Sul entre 1821 e 1822.
Fôra a redução uma das mais prósperas, sendo um importante centro produtor de gado e erva-mate.
Uma vaca pastava onde fôra antes a Catedral, destruída muito menos pelas Guerras Guaraníticas do que pela incúria administrativa e pelos colonos que resolveram utilizar-lhe as pedras para construírem suas moradias - fato denunciado tanto por Robert Avé-Lallemant, que visitou as ruínas em 1850, como pelo viajante pernambucano Hemetério José Velloso da Silveira, que visitou as ruínas em 1855, como também pelo Cônego João Gay, que registrou o prosseguimento da obra de destruição em 1863.
Resolvemos ir a São Nicolau, onde se situava a comunidade dos melhores escultores, segundo os testemunhos da época.
Pegamos a estrada para São Luiz Gonzaga e entramos na cidade em direção a 16 de Novembro, uma pequena cidade agrícola, povoada por colonos alemães.
O caminho mais curto de 16 de novembro para São Nicolau estava interditado, por causa das obras de asfaltamento do Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem do Estado do Rio Grande do Sul, que, ademais, poderia também proceder à pavimentação do caminho para as outras ruínas, já que elas foram tombadas pela UNESCO como patrimônio cultural da humanidade.
As ruínas da Igreja de São Nicolau, construída em 1626, situam-se na Praça Central
Scheila chamou-me a atenção para o fato de que o soalho da igreja não era de chão batido, mas de pedras, cujos restos ainda se viam pelo chão da Praça.
Consegui filmar um joão-de-barro que pulava sobre as pedras do antigo soalho.
Fora da Praça, a entrada para um túnel subterrâneo construído àquela época.
Crianças em uma casa vizinha exercitavam-se no laço, com uma caveira bovina pendurada num cavalete de construção.
No Museu de São Nicolau, filmamos utensílios de metal como maçanetas, fechaduras, pregos fundidos nas Missões.
Terminada esta visita, projetamos uma viagem às missões da Argentina (San Ignacio Mini) e do Paraguai (Trinidad), para completarmos o ciclo.
Após a visita a São Nicolau, passamos por Santo Ângelo, onde conhecemos o Museu Histórico e Regional, onde se vêem tanto peças dos tempos das Missões como reminiscências da Guerra dos Farrapos e da Revolução Federalista.
Não chegamos a ver a Estação Ferroviária, construída em 1918 a partir de um projeto de Luís Carlos Prestes, mas vimos ali um monumento à Coluna Prestes-Miguel Costa - um dos marcos do tenentismo, pois à época não havia ainda Prestes abraçado a doutrina marxista - feito por Oscar Niemeyer.
Decidimos pernoitar em Cruz Alta, a terra natal de Érico Veríssimo, cuja casa fôra adquirida pela municipalidade e tombada sete anos antes da morte do autor da saga dos Terra-Cambará.
À vista dos preços no calçadão dos hotéis, seguimos a orientação de um dos habitantes e paramos na Pensão Serrana: simples, limpa, barata e com água quente e bom refeitório.
No dia seguinte, visita à casa de Érico Veríssimo, onde além dos objetos que lhe pertenceram e das fotos em que o romancista aparecia ao lado de pessoas do mundo político e artístico, chamaram a atenção particularmente os seus desenhos, a sua obra de cartunista.
Dali, seguimos a Santa Maria, cidade universitária, com um trânsito extremamente irracional, que em maio é cenário de um dos mais importantes eventos da música nativista: a Tertúlia.
Por ali é que subiram as tropas encarregadas de fazer cumprir o Tratado de Madrid, numa jornada que, abstração feita do seu desígnio, não deixou de merecer o epíteto de heróica, já que o frio fora responsável pela morte de animais de carga, montarias e soldados.
Quisemos visitar a catedral, construída nos anos 20, com inspiração francamente barroca.
Estava fechada à visitação pública, o que foi uma pena, pois eu queria ver os afrescos de Aldo Locatelli.
De Santa Maria, seguimos em direção à estrada que liga Uruguaiana a Porto Alegre.
Acostumado como estava a fazer o percurso de ônibus à noite, aos tempos em que iniciara minha carreira, era, efetivamente, a primeira vez que eu reparava na beleza do cenário pampeiro que ladeava a BR 290.
Melhor um poeta, Basílio da Gama, para descrever no Canto IV d' O Uraguai tal cenário:
"Assim quem olha do escarpado cume
Não vê mais que o céu, que o mais lhe encobre
A tarda e fria névoa, escura e densa.
Mas quando o Sol de lá do eterno e fixo
Purpúreo encosto de dourado assento,
Coa dourada mão desfaz e corre
O véu cinzento de ondeadas nuvens,
Que alegre cena para os olhos! Podem
Daquela altura, por espaço imenso,
Ver as longas campinas retalhadas
De trêmulos ribeiros, claras fontes
E lagos cristalinos, onde molha
As leves asas o lascivo vento.
Engraçados outeiros, fundos vales
E arvoredos copados e confusos".
Parabéns pelo Blog e a linda pintura de Sheila!!! Abraços.
ResponderExcluirObrigado, Jalusa.
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