domingo, 22 de março de 2009

Ruínas e cataratas


Quando se fala em visitar a Argentina, logo se pensa em Buenos Aires, com suas livrarias, seu magnífico Teatro Colón, suas imponentes Galerias Pacífico, a Pizzaria Los inmortales, a Recoleta e tantas outras atrações que oferece a cidade que Gardel adotou.

Outrossim, quando se fala em visitar o Paraguai, o que se tem em mente é, em regra, o grande mercado que é a Ciudad del Este.

Entretanto, nossa viagem para ambos os países em dezembro de 1997 teve como objetivo conhecer, mesmo, as ruínas das Missões fora do Brasil.

Um colega meu de serviço, Dr. José Guilherme, já havia estado em San Ignacio Mini, na Argentina, e dissera estar melhor conservada que as Missões riograndenses.

Scheila e eu, após verificarmos os possíveis caminhos para ali chegarmos, decidimos ir por Foz do Iguaçu, no Paraná, pois eu ainda não tinha visto pessoalmente as cataratas.

Após descermos do avião, tomamos um táxi até o hotel onde pernoitamos.

Dali, tomamos as informações sobre o melhor meio de irmos a San Ignacio Mini e, em seguida, pegamos um ônibus para o posto fronteiriço com a Argentina, onde foram carimbados os passaportes em uma operação estranhamente muito demorada.

Do posto, seguimos a pé até Puerto Iguazu, ladeando os caminhões que esperavam a liberação das respectivas cargas pelos fiscais aduaneiros.

Entrando na cidade, obtivemos informações sobre o transporte a San Ignacio, e verificamos que o melhor horário para sairmos de Puerto Iguazu seria, o mais tardar, nove horas da manhã.

Fizemos, então, sinal para um ônibus que se dirigia a Posadas, já que San Ignacio ficava no caminho para essa cidade.

A estrada era ladeada por serrarias e pela floresta sub-tropical.

A paisagem era tão semelhante à do Paraná que, não fosse a existência do marco fronteiriço e a língua falada pelos habitantes, seria possível dizer-se que se tratava do mesmo país.

Aliás, a rigor, ali deveria ser o cenário do filme The mission, de Roland Joffe, com Robert De Niro e Jeremy Irons, que, no entanto, foi rodado na Colômbia, em plena Floresta Amazônica.

Chegada a San Ignacio.

Caminhamos em direção às ruínas jesuíticas, que se localizavam a três ruas de distância da praça em que descêramos.

Ao chegarmos à primeira parede visível do parque onde elas estavam localizadas, vimos que teríamos de dar quase uma volta inteira ao redor do quarteirão para termos acesso a seu interior.

Bares e restaurantes ladeavam o parque.

Almoçamos no primeiro em que encontramos uma vaga.

Na entrada do parque havia um museu, onde se realizavam, também, representações teatrais.

A redução, fundada em 1610, na região do Guairá, trasladou-se em 1632 fugindo das incursões dos bandeirantes até que, em 1696, instalou-se no sítio que então estávamos visitando.

Seguimos por um corredor de residências dos indígenas, sem telhados, que conduzia à catedral.

Ao lado da catedral, o cemitério onde se enterravam os índios, cabendo aos padres o sepultamento nas criptas sob o altar maior.

No pátio, bandos de quero-queros se reuniam e teiús corriam fugindo da aproximação humana.

À noite era realizado nas ruínas, tal como ocorria em São Miguel das Missões, no Brasil, o espetáculo de som e luz.

O nome de San Ignacio Mini fora dado àquela missão em virtude da existência de outra missão em homenagem ao fundador da Companhia de Jesus – Santo Inácio de Loyola – situada no Paraguai, a poucos quilômetros de Assunção, chamada San Ignacio Guazu, datada de 1609.

Saindo dali, tomaríamos o ônibus para Santa Ana, no qual o tratamento foi abaixo da crítica.

Fomos viajando em pé e foi-nos cobrado duas vezes mais que no ônibus anterior.

Perguntamos a respeito da localização das ruínas e nos deixaram na entrada da cidade, dando uma informação vaga, quando deveríamos ter descido pelo menos 4 km depois.

Após chegarmos a uma praça onde havia um monumento ao lavrador, com uma homenagem ao Presidente General Julio Roca, que, na Campanha do Deserto (1878), empurrara os índios para o norte para darem espaço ao colonizador branco - homenagem, esta, que também se verificaria na nota de 100 pesos -, perguntamos se estávamos muito longe das ruínas às primeiras pessoas que vimos.

Contaram-nos que deveríamos ter descido 4 km adiante, do lado oposto da estrada.

Seguimos a pé até a entrada da cidade e, em seguida, fomos andando até a entrada para as ruínas de Santa Ana, já que nenhum ônibus queria recolher-nos para fazer tão curto percurso.

O caminho era uma estrada de terra, com vários altos e baixos.

Chegamos às ruínas.

Ali dentro, segue-se um caminho de pontes de madeira, com vários teiús atravessando-o.

A missão de Santa Ana estava mais destruída que São Miguel, podendo se comparar a São João Batista, em termos de conservação.

É ela datada ainda dos tempos em que o bandeirante paulista Antônio Raposo Tavares ia prear índios, nas reduções do Paraná, tendo-se trasladado inúmeras vezes, desde a sua fundação, em 1633 até 1660, quando se instalou no local que então estávamos visitando, local que foi bastante propício a seu progresso até a sua destruição no ano de 1817, em virtude da guerra de fronteiras entre as tropas de Artigas e do Reino Unido do Brasil, Portugal e Algarves.

As árvores trepadas sobre os muros do que antes fôra um templo, os cactos vencendo as fendas dos tijolos que compunham os terraços de contenção.

Em compensação, fomos ali muito bem atendidos pelo pessoal, que, inclusive, encheu nossas garrafas com suco de limão, uma vez acabadas nossas reservas de água.

Chegando a Posadas, resolvemos parar no Hotel Libertador, onde conseguimos alugar um automóvel com chofer – pena termos esquecido o nome, tal foi a gentileza e a boa vontade para conosco! – para irmos às missões do lado paraguaio e voltarmos ao Brasil.

Devo registrar, ainda, que, um pouco antes de contratarmos o chofer, fui convidado para tomar uma cuia de chimarrão, que de bom grado aceitei, lembrando os tempos em que trabalhava no interior do Estado do Rio Grande do Sul.

Aliás, era a primeira vez que na Argentina eu recebia este traço característico da hospitalidade gaúcha (viajando, mais tarde, um pouco mais ao norte, visitando os salares na fronteira com o Chile, as ruínas de Tastil - que abrigaram um povo guerreiro e orgulhoso, que preferiu um suicídio coletivo, submergindo em meio ao Oceano Pacífico, à incorporação ao Tahuantinsuyu -, o Pucará de Tilcara, a igreja de Uquía construída em 1691, abrigando as pinturas dos anjos em trajos de arcabuzeiros do século XVII, a brancura barroca de Cachi, os gigantescos cactos que margeavam as estradas das províncias de Salta, Jujuy e Tucumán, impressionar-me-ia muitíssimo com a demonstração de uma extraordinária boa educação por parte dos argentinos daquela região).

Verificamos, efetivamente, que dado o difícil acesso a muitas das ruínas e em virtude dos acontecimentos no ônibus para Santa Ana, para conseguirmos no menor espaço de tempo possível ver o máximo e com o mínimo de percalços, melhor seria, mesmo, que alugássemos um automóvel.

A natureza foi bastante pródiga com o Paraguai, cujos campos mostravam uma notável transição da floresta subtropical para o cerrado, e isto no espaço mínimo que lhe coube.

Trinidad, datada de 1706, nos impressionou pelo estado de conservação, embora uma das paredes laterais tivesse caído.

O púlpito com os entalhes ainda bem visíveis, reproduzindo, tal como os capitéis das missões brasileiras e argentinas, as folhas da erva-mate e figuras antropomorfas com traços guaranis.

Em cada uma de suas faces, aparecia um dos quatro animais do Apocalipse – o leão, o touro, a águia e o anjo, este último com traços bem guaranis – .

Imagens dos santos ainda nos seus nichos, anjos portando harpas, violas e alaúdes em baixos-relevos sobre as janelas.

Entalhes sobre a porta da sacristia, seguindo a mescla do estilo barroco, extraordinariamente rebuscado, com o dado autóctone da vegetação nativa.

A visão panorâmica que se tinha do alto do que teria sido, antes, o côro da catedral permitia várias fotos interessantes.

Ali se podia verificar um dos traços da arquitetura tipicamente espanhola que eram as marquises nas residências dos índios, com as colunas ligadas por arcos, embora o dado autóctone, das pedras juntas sem argamassa aparente, também se fizesse presente.

O caminho para Jesús – redução fundada em 1685 – era uma estrada de terra, muito barrenta e esburacada, cheia de atoleiros, que ia dar em um vilarejo cercado de árvores, no qual, curiosamente, haviam residido tanto ingleses como portugueses, embora as construções, sob o ponto de vista arquitetônico, nada tivessem de especial.

A catedral, entretanto, valia as dificuldades para a ela se chegar.

Restaurada, com as paredes todas inteiras, faltando apenas o telhado, o acesso difícil preservou-a com mais facilidade à sanha dos saqueadores.

É interessante o significado que para cada um destes países tem a preservação deste ponto de intersecção entre as respectivas histórias: para o Brasil e Argentina, trata-se de preservar o patrimônio histórico, para o Paraguai, mais que isto, é um patrimônio familiar, pois a maioria da população era descendente dos atores do drama da Guerra Guaranítica.

Mais que uma edificação de um templo religioso, o que ali se via era o fruto do trabalho dos antepassados, era a contribuição destes às gerações futuras, e por isto é que tinha de ser preservada.

Aliás, este dado me parece suficiente para dar razão à análise de Capistrano de Abreu, quando considera que a resistência dos missioneiros às tropas do Tratado de Madrid não se deu por instigação dos jesuítas, que, aliás, tinham dentre os princípios a serem seguidos a incondicional obediência a seus superiores, mas exatamente porque não se tinham os padres assenhoreado por completo das almas dos gentios, frustrando, assim, as expectativas dos Reis de Espanha e Portugal.

Parece-me importante registrar que, do lado paraguaio, a decadência das Missões se iniciou em 1768, quando foram expulsos os jesuítas da Espanha e de seus domínios, tendo culminado à época da ditadura do Dr. Gaspar Rodriguez de Francia, o antecessor dos López, cujo último representante protagonizou a Guerra com a Tríplice Aliança.

Mais tarde, li no relato do Coronel Fawcett que, no Chaco, os índios capturaram uma aldeia de origem jesuítica com igreja e tudo, impedindo o acesso de todos os homens civilizados a ela, conservando, ainda, a tradição de homens brancos com armaduras e utilizando a cruz como símbolo desde tempos imemoriais, não a cristã, mas a budista, de acordo com o que lhe informara o Ministro japonês em Assunção.

Conhecemos o Parque argentino das cataratas do Iguaçu, após simplesmente passarmos por Ciudad del Este, pois não nos apetecia em nada descer naquela cidade, já que nosso objetivo não fôra o de fazer compras.

Cruzando a vegetação pelas trilhas de cimento, das quais não se poderia sair em virtude de haver muitas cobras venenosas no Parque, volta e meia dávamos com um daqueles grandes saltos, em que os arco-íris adotavam forma semi-circular.

Ao regressarmos ao Brasil, o motorista nos deixou em um hotel na Avenida das Cataratas, no qual havia inclusive um mini-zoológico.

Um quati, em seu cercado, escavava furiosamente, frustrado porque do outro lado estavam inúmeros galináceos – faisões e pavões, sobretudo –, que, não fossem as grades, já se teriam convertido em um manjar.

Um filhote de veado catingueiro seguia-nos pelos caminhos de pedra do jardim do hotel, que eram cruzados de vez em quando por um teiú em disparada.

No dia seguinte, com um automóvel do hotel, fomos ao heliporto onde faríamos o passeio de sobrevôo das cataratas.

A despeito do meu famoso medo de altura, sentei-me à frente, ao lado do piloto e fui fotografando por vários ângulos o rio e as florestas de suas margens, as águas se despenhando montanha abaixo, os vapores se elevando.

As manobras do helicóptero, com toda a confiança que se depositava no piloto, para quem estava sentado na frente e morria de medo de altura, não deixavam de ser algo eletrizante.

Visitamos o lado brasileiro das cataratas, cujas trilhas são muito mais seguras que as do lado argentino e onde se tem o melhor ângulo de visão: aos argentinos foi dado o lado mais belo das cataratas e a nós a possibilidade da contemplação desse lado mais belo.

E pensar que estas cataratas, que constituíram o motivo mais forte para a atração do turismo à região no século XX, aos tempos da colonização eram um verdadeiro obstáculo que se colocava à exploração do interior da América do Sul.

Fizemos, depois, um míni-safári pela floresta subtropical – “Macuco Safári de Barco” – , em um comboio puxado por um jipe do Exército, que nos conduziria até o início da trilha para o embarcadouro onde tomaríamos a lancha para um passeio até as proximidades do ponto onde as cataratas terminavam a sua queda e reviveríamos as mesmas emoções que Don Alvar Nuñez Cabeza de Vaca experimentou ao descobrir o acidente geográfico que hoje atrai turistas do mundo inteiro.

Uma norte-americana, no caminho que fazíamos para o atracadouro, perguntou-me se os lagartos que cruzavam o nosso caminho entravam na dieta normal do brasileiro.

Respondi-lhe que na minha dieta não entravam, e que eles só eram consumidos por quem tinha que sobreviver na selva.

Quando chegamos ao atracadouro, os americanos já se sentiam contentes com o caminhar pela floresta, não se aventurando a embarcar nos botes de borracha a motor que nos levariam a conhecer as cataratas por baixo – isto é, a própria finalidade do passeio foi por eles desprezada –, o que me fez chamá-los, em bom português, já que faziam questão de mostrar que não entendiam, de “frouxos”.

Para eu pagar o meu gesto infantil, uma senhora americana idosa, pertencente – felizmente – a outro grupo foi na nossa lancha e, muito simpática e gentil, fotografou a Scheila e eu.

Um casal de pessoas idosas falou-nos muito bem de Cassino, balneário nas proximidades de Rio Grande, o que nos fez trazê-lo às nossas cogitações, já que o litoral gaúcho, modo geral, era caracterizado por sua forma retilínea e suas ondas violentas, o que fazia com que as necessidades de praia fossem supridas pelo vizinho Estado de Santa Catarina.

A seguir, fomos visitar o Parque das Aves no qual se viam, cruzando o caminho dos seres humanos, tucanos, araçaris, beija-flores, joões-de-barro, separados por vários viveiros arborizados em que havia pontes de madeira para se prosseguir sem o risco de pisotear ninhos de pássaros no chão.

Aves nacionais e estrangeiras, aves de rapina e aves canoras, aves de terra e aves que voam, araras, papagaios, cacatuas, faisões, pavões-do-pará, grous, flamingos, patos, marrecos, emas, casuares, enfim, aves para todos os gostos, exceto aves marinhas.

Dali saímos em direção ao aeroporto, onde tomaríamos o avião para retornar a Porto Alegre.

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