domingo, 22 de março de 2009

América Latina, desconhecida e desprezada



Uma pergunta que muitas vezes nos tem sido feita: “por que não aproveitar o tempo para viajar mais amiúde à Europa, ao invés de ficar a percorrer estes países da América Latina, já que de pobreza e miséria basta o Brasil”?

Há vários móveis que levam as pessoas a viajar.

Claro que minha mulher, Scheila, e eu não desprezamos uma viagem confortável, para ver coisas bonitas, teatros etc.

Entretanto, há um componente que parece fundamental, a justificar estas viagens por lugares aparentemente pouco atrativos – e aparentemente, diga-se de passagem, por puro preconceito, muitas vezes –, que é o fato de termos nascido em um país de Terceiro Mundo, situado na América Latina.

O brasileiro culto, modo geral, envergonha-se de ter nascido fora da Europa, longe da civilização, quer uma aproximação maior com o Primeiro Mundo e “branquear” o mais possível o seu sangue.

Paradoxalmente, comemora a sua independência política em relação a Portugal, torna-se extremamente patriota no que se refere ao futebol, combate qualquer tentativa de colonização econômica, canta o Hino Nacional a plenos pulmões.

Qual será a base de todo este sistema de pensamento?

O que nos distingue do restante da América Latina, além da língua?

Será que o Brasil é superior ao Peru, à Argentina, à Venezuela, à Costa Rica?

Será que é inferior?

Em quê?

De acordo com que padrões?

Veja-se que o Brasil, o Peru, a Argentina, a Venezuela, o Uruguai não são conceitos encontráveis no plano da natureza, são conceitos meramente políticos, que, entretanto, terminam por influenciar a cultura dos habitantes dos territórios a que estes nomes são aplicados.

A cultura européia, que como um fogo avassalador se alastrou pelo mundo, o que teria ela de superior às culturas que habitaram originariamente o território americano?

Teriam desaparecido definitivamente tais culturas?

Justificar-se-ia a preservação delas?

Caberia falar em uma cultura latino-americana?

Ter-se-ia formado de modo autóctone ou haveria influências exteriores?

Qual dentre as culturas seria a mais antiga?

Qual seria a inconveniência da presença do homem na América, e particularmente na América Latina, antes da data oficialmente assinalada?

Estas perguntas, longe de representarem uma angústia de diletante intelectual enfarado pela falta do que fazer, traduzem, na realidade, a própria raiz do grande conflito que se instaurou no início do século XX, quando o mito de uma raça superior justificou os campos de concentração e extermínio, em que não só judeus como ciganos foram vitimados, bem como da teoria da missão divina do wasp (“white, anglo-saxon, protestant”) responsável pelos conflitos raciais nos Estados Unidos da América, a limpeza étnica que se quis pôr em prática na Bósnia-Herzegovina, só para situar alguns dos mais problemáticos.

Como dito, isto não desvaloriza as viagens à Europa, tampouco a cultura européia está sendo repudiada, até porque escrevo em português com caracteres latinos, continuo um grande apreciador de Shakespeare – um autor que em seu tempo foi combatido por seu plebeísmo e hoje é pechado de pedantesco por aqueles que não conhecem sua obra –, dos romances de Alexandre Dumas e Júlio Verne, dos dramas lítero-musicais de Richard Wagner, das sinfonias de Beethoven, de filmes como High noon e os desenhos animados de Disney nos anos 30.

Apenas busco compreender o contexto em que estou inserido para tomar as posições que nortearão as minhas atitudes e visualizar as conseqüências possíveis de cada uma delas.

O que está registrado nas páginas que se seguem não é apenas um relato de viagens, nem tampouco o mero resultado de uma pesquisa puramente livresca.

É, sim, uma tentativa de partilhar experiências que vivenciamos com quem quer que tenha semelhantes preocupações e pretenda visitar estes lugares – alguns nem mesmo sonhados pelas Agências de Turismo – sem espírito de colonizador, mas com o respeito devido pelo visitante ao anfitrião.

Se Cassiano Nunes, ao publicar pela Saraiva suas impressões de viagem, dizendo-se seduzido pela Europa, cantou as belezas do Velho Continente, por que não tentarmos resgatar a nossa própria identidade como latino-americanos?

Por que não respeitarmos da mesma forma os escombros dos templos gregos e as ruínas das civilizações andinas?

Por que nos vangloriarmos de conhecer as lendas dos gregos e romanos e de desconhecer as dos brasilíndios, ao argumento de se tratar de uma sub-raça primitiva, que apenas estorva o triunfal caminho do progresso?

Por que deixarmos, muitas vezes, de acreditar em nossos sentidos por não ter havido nenhum prévio pronunciamento acadêmico a respeito do que eles captam diretamente?

Aliás, devo trazer aqui um pronunciamento acadêmico muito interessante no sentido de se pôr em teste a assertiva segundo a qual a civilização européia é a única digna deste nome porque a fonte de todo conhecimento científico, que tantos benefícios inegáveis trouxe para a humanidade, foi ela:

“A asserção de que não há conhecimento fora da ciência – extra scientiam nulla salus – nada mais é que outro e convenientíssimo conto de fadas. As tribos primitivas faziam classificações de animais e plantas mais minuciosas que as da zoologia e botânica de nosso tempo, conheciam remédios cuja eficácia espanta os médicos (e a indústria farmacêutica já aqui fareja uma nova fonte de lucros); dispunham de meios de influir sobre os membros do grupo que a ciência, por longo tempo, considerou inexistentes (vodu); resolviam difíceis problemas por meios ainda não perfeitamente entendidos (construção de pirâmides, viagens dos polinésios). Havia, na Idade da Pedra, uma astronomia altamente desenvolvida e internacionalmente conhecida, astronomia que era factualmente adequada e emocionalmente satisfatória, dando solução a problemas tanto sociais quanto físicos (o mesmo não se pode dizer a respeito da astronomia moderna) e que foi submetida a testes por meios muito simples e engenhosos (observatórios de pedra na Inglaterra e no Pacífico Sul; escolas astronômicas na Polinésia).” (PAUL K. FEYERABEND. Contra o método. Trad. Octanny S. da Motta & Leônidas Hegenberg. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989, p. 462).

Quando algum brasileiro, com ares de superior, estranha por que determinados assuntos aparentemente anódinos sejam motivos de irritação para um peruano ou um colombiano e nisto vê um indício de subdesenvolvimento e inferioridade, e acha perfeitamente natural que em certas aldeias espanholas não se queira discutir a figura do Generalíssimo Franco ou que na França haja pessoas para quem a palavra Algérie seja tabu, inconscientemente ele atualiza os mitos em que se estriba o pacto colonial através do rito inconsciente da respeitabilidade e superioridade européias diante das idiossincrasias características da inferioridade do Terceiro Mundo.

Disto se deram conta pensadores e artistas europeus como Montaigne, Schopenhauer, Gauguin e Lévi-Strauss, pensadores que foram bem sucedidos em sua postura de respeitar as culturas extra-européias.

O cônsul e aventureiro inglês Richard Francis Burton e o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, mesmo conscientes deste dado, não conseguiram deixar de passar o filtro europeu na análise dos elementos que compunham o acervo cultural do denominado Novo Mundo.

Hegel não teve dúvidas em assinalar como uma imposição da Razão a missão européia de afirmar o progresso da liberdade, cuja expressão máxima estaria no Estado Prussiano: foi um dos colonialistas mais sinceros.

Aliás, neste colonialismo, Marx foi muito mais seu discípulo do que imaginava, porque mesmo verberando os métodos da metrópole nas Colônias, não conseguiu ver nas figuras que se desenhavam à sua frente mais que êmulos de Napoleão Bonaparte.

Minha preocupação externada em livros e artigos jurídicos (http://dialogoscomadoutrina.blogspot.com/2009/05/temas-versados-em-obras-individuais-do.html), cuja leitura não aconselho ao leigo, porque, como sói acontecer com os textos técnicos, não são exatamente a receita indicada para um prazer estético, não foi construída como o indianismo de um José de Alencar, que despiu cavaleiros medievais, meteu-os em meio ao mato e os chamou de índios: procurei testá-la a partir do contacto com a realidade a que se dirigem meus raciocínios.

A mesma preocupação com o resgate da identidade do homem americano está presente no belíssimo trabalho que minha esposa apresentou ao concluir o curso de História na UnB sobre O calendário no ciclo agrário andino.

As viagens que serão narradas adiante são as mais aventurosas, as mais cheias de incidentes.

Viagens confortáveis, com hospedagem em hotéis cinco estrelas e quejandos são ótimas para se descansar e são chatíssimas para se narrar.

Advirto, porém, o possível leitor destas linhas que nenhum dos personagens destas narrativas está fadado a praticar atos de heroísmo, necessariamente: ao contrário, são seres humanos comuns que preenchem as páginas que se seguem, cometendo erros – alguns, até, bem ridículos –, sendo acometidos por angústias bobas e mesmo por medos.

Carente de talento para urdir tramas de romances e contos, faço a crônica das viagens.

Incapaz de cantá-los, por não ser poeta ou compositor, descrevo o cholo, o “pelo-duro”, o negro quilombola, o pescador do litoral nordestino, o caboclo nortista, os índios de todas as tribos, sem, contudo, cair na ingenuidade típica de um Rousseau, pondo-os como algo mais do que o que realmente são: seres humanos, capazes, individualmente, de produzir simpatia ou antipatia em seus semelhantes.

Sem fazer proselitismos políticos, sem correr atrás de discos voadores (figurativa e literalmene falando), registro o que vejo e o que ouço.

No respeito pelo anfitrião está compreendida, ainda, uma regra fundamental: não se intrometer nos seus assuntos internos, por mais tentador que isto possa parecer.

4 comentários:

  1. Caro Amigo RICARDO & Família! Parabenizo pela iniciativa e pelo enfoque. Em meu modo de ver, esta é mais uma forma de contribuição à boa cultura e à reflexão. De fato, as viagens (ainda que ditas "de lazer")ganham importância quando acrescentam não apenas conhecimento, mas, especialmente, quando auxiliam no desenvolvimento de nossa personalidade, tornando-nos, efetivamente, melhores como seres humanos. Grande abraço! CLÁUDIO ROBERTO - 03ABR2009.

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  2. Obrigado, Cláudio. É exatamente por isto que, quem viaja com olhos de ver, termina por aceitar melhor o ser humano tal como ele é. Abraço. Ricardo.

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  3. Caro RICARDO,uma feliz oportunidade para dizer da minha admiração por vocês. Viajando vemos como cada povo cria e faz seu caminho.O Brasil é "diferente"como todos os lugares do mundo, nos irmanamos por sermos todos da mesma raça,a raça "humana".Admiro povos mais desenvolvidos pela educação que me encanta.Obrigada.Abraço.Roseli

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  4. Obrigado, Roseli. De fato, quando se viaja sem o espírito de colonizador ou qualquer outro decorrente da noção da própria superioridade, a noção de humanidade começa a se desenhar de um modo muito mais fácil. Por outro lado, é interessante verificar que a própria noção de "povos desenvolvidos" passa a necessitar da resposta acerca dos parâmetros de desenvolvimento que se esteja a tomar em consideração. Muito rico e valioso o teu comentário, por suscitar estas e mais outras questões. Abraço. Ricardo.

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